No fim do ano passado, tive a oportunidade de ouvir Jorge Drexler cantar Tinta y Tiempo ao vivo, em São Paulo. Desde que fui apresentada à obra do cantor e compositor uruguaio, essa se tornou uma das minhas músicas preferidas. Acho até que Drexler tem outras canções sobre seu trabalho artístico, mas essa é exatamente do jeito que gosto: direta, escancarada. Ao ouvir, eu imagino o artista na agonia da criação, tentando acelerar um processo que ele sabe estar longe do seu controle.
Mas apesar da letra, que me passa essa inquietação, a sonoridade da música é como um mantra, a repetição do desejo do artista pra vida: tinta e tempo, tinta e tempo, tempo e tinta.
A canção faz parte de um álbum que recebeu o mesmo nome e foi lançado em 2022. Então, não é difícil imaginar alguém enfrentando um bloqueio criativo durante a pandemia. E o desfecho nós já sabemos. Se tivemos um álbum e uma turnê, foi porque o bloqueio foi vencido. Mas o mais interessante, em minha opinião, Drexler revelou no show. Ele não venceu sozinho.
Pelo que consigo me lembrar, foram dois anos de agonia e tentativas de composição. Até que o tempo se fez escasso e urgente. As pessoas foram retomando o ritmo de antes e, então, já era tempo de ir ao estúdio gravar. Drexler contou que o álbum se fez enquanto ele ia descobrindo os artistas com quem queria colaborar. Em contato com as pessoas, o que não pôde ser finalizado em dois anos, aconteceu em duas semanas.
Lembro de rir para mim mesma enquanto ouvia essa história. A pandemia também foi um momento de bloqueio e tentativa de produção para mim. Foi o período de escrita da minha tese. E um período em que investiguei bastante as minhas dificuldades. O que tinha mudado? Por que eu não me sentia mais capaz de escrever? Por que me sentia desconectada da minha pesquisa? Uma das respostas era o meu afastamento da universidade e do ambiente acadêmico (que nem sempre é bom, mas ainda assim pode ser estimulante).
Se no meu trabalho acadêmico tive que enfrentar o bloqueio em maior parte sozinha. Na escrita literária, eu me permiti aprender com essa experiência e buscar um caminho diferente. De forma mais ou menos concreta, acho que sempre compreendi o impacto que fazer parte da Mulheres que Escrevem teve na minha escrita. Meu período mais ativo na iniciativa, entre 2017 e 2018, coincide com meus momentos mais frutíferos. Em 2019, quando voltei a minha cidade natal, o distanciamento físico cobrou seu preço.
Desde o ano passado, decidi retomar minha escrita na sala de aula. Assim, me inscrevi em uma pós-graduação em Escrita Criativa (NESPE). Relutei muito antes de fazer isso. Eu já tinha um livro escrito e sempre reclamava de falta de tempo. Não valeria mais a pena dedicar meus fins de semana a terminar meu projeto? Mas confiei que aprender sobre escrita e, principalmente, estar em contato com mais escritores seria abandonar a repetição do meu bloqueio criativo.
Se você espera que eu diga que essa escolha resolveu todos os meus problemas, sinto muito. Ainda agora procrastino e estou atrasada nos prazos que me dei. Mas desde que comecei a receber feedbacks de dois amigos escritores, tenho cada vez mais certeza de que não se escreve só. Oferecer um texto para a leitura, para mim, é como fazer terapia. Ainda hoje sinto desconforto ao ter que enfrentar o momento de saber o que acharam, mas, após cada comentário, a história parece mais viva e a escrita mais tranquila. Lentamente o livro vai se tornando outro. Algo que não era antes, que me apaixona cada vez mais.
Há tempos venho querendo falar disso aqui. Apesar de achar que pouca gente que me lê pode ter vontade de escrever, sinto que cada vez mais precisamos acabar com a ideia do artista solitário. De certa forma, tenho feito esse caminho para fora da minha cabeça por aqui também. Manter esse espaço com você me faz mais escritora do que nunca. Então, espero que continue escrevendo comigo.
Vícios dos últimos dias
Ando perdendo o medo da ficção científica. Meu arrebatamento pela Bora Chung e as aulas da pós sobre os gêneros do fantástico, me deixaram com vontade de me aventurar mais nesse terreno. Por isso, assisti à série da Netflix O problema dos 3 corpos, inspirado no livro de Liu Cixin. A comoção com a história foi tão grande por aqui que, depois dos 8 episódios da nova versão, corremos para a Viki, a plataforma de streaming asiática, para dar uma conferida na versão chinesa.
Ainda na tônica de perder o medo das coisas, escrevi um texto no blog do meu site sobre Coelho Maldito. Sei que para alguns leitores é difícil acompanhar o que publico e onde, mas esse é um trabalho de organização que também tenho feito. Recentemente, decidi que manteria no blog registros sobre os livros e textos que leio. Aqui na newsletter quero construir outro tipo de texto, um que é uma conversa entre amigos.
Querida Seane, esta newsletter está cada vez melhor! Já criou aquele efeito de expectativa: "quando sai a próxima? Não posso deixar de ler!" Compartilho essa noção de que não se escreve sozinho. Minha experiência coincide muito com a sua.
Pera, tem uma versão chinesa d'O problema dos 3 corpos? Tipo Millenium tem o filme estadunidense e a trilogia sueca?