Sobre desejos, fermentação e descarte
Falar sobre fermentação e descarte também é falar sobre como decidi apostar no meu desejo a partir de agora
Quando imaginei pela primeira vez essa newsletter – quando ela ainda não tinha nome, e era só um desejo de escrever e compartilhar ideias com mais pessoas – pensei que não queria escrever textos tão pessoais. Mas, assim que escolhi o tema desta primeira edição, percebi que seria impossível escrever à vontade e com vontade sem situar o leitor sobre quem sou e onde me encontro. Falar sobre fermentação e descarte é exatamente sobre isso.
No fim de 2023 pedi licença do trabalho. E essa ação era algo que vinha fermentando dentro de mim desde o meio do ano. Planejei, busquei alternativas, respirei fundo e, no fim, as coisas ainda aconteceram de uma hora para outra como se eu tivesse sido atropelada por um uber que eu mesma pedi. O fato é que em 18 de dezembro, quando outros funcionários da empresa pública onde eu trabalhava iniciavam a semana de recesso, eu estava oficialmente de licença e decidi fazer pão.
Já faz algum tempo que me aventuro na fermentação natural e, em 2023, por mais que o tempo livre fosse escasso, consegui manter o hábito de preparar pães pelo menos a cada 15 dias. Como resultado da rotina e das farinhas de boa qualidade que meu falecido cartão alimentação me permitia comprar, tenho um fermento forte e ativo.
Se você já tentou fazer pão alguma vez, sabe que o trabalho sempre começa pelo fermento. Se você usa um fermento seco, é um processo de cinco a dez minutos. Já na fermentação natural, conto com um prazo de quatro a seis horas na temperatura de São Luís. Mas ainda assim são procedimentos parecidos: precisamos alimentar o fermento e esperar que ele comece a criar bolhas.
No meu primeiro dia sem 8h de trabalho, precisei alimentar o meu fermento. Peguei a isca que tinha na geladeira, separei 100g e adicionei mais água e farinha. Depois que tudo estava mexido e guardado num armário para fermentar, sobrou a missão de decidir o que fazer com o descarte.
Confesso que na primeira vez em que tentei mexer com fermentação natural, lá em 2017, a ideia de descartar parte do meu fermento me parecia inconcebível. Afinal, aquela mistura com cheiro esquisito era fruto de investimento em tempo e ingredientes. Não me agradava a ideia de jogar metade daquilo fora a cada semana ou quinze dias. Por isso, eu mexia nas contas das receitas para evitar ao máximo produzir em excesso. Parecia que eu estava inventando a roda. Como tantos confeiteiros não pensaram nisso antes? Ou será que eles só não contavam?
Em 2017, eu tinha um fermento fraco que demorava para criar bolhas. Mas eu não sabia que isso tinha a ver com o descarte e a alimentação até 18 de dezembro de 2023. O que aconteceu em especial nesse dia foi que, enquanto procurava uma receita para aproveitar o descarte do meu levain, percebi que a minha relação com esse processo tinha mudado.
Correndo o risco de ser imprecisa, esta é a minha compreensão do processo. Lendo as instruções do Luiz Américo Camargo, aprendi algumas coisas sobre o fermento e o descarte. Em primeiro lugar, você deve imaginar que o fermento se alimenta dele mesmo. Ele é uma massa de trigo e água que é alimentada com mais trigo e água. Se você guarda exatos 100g na geladeira para evitar descarte, você precisará alimentar o fermento com mais frequência, porque o estoque de nutrientes dele está limitado àquela massa. Outra coisa, é que descartar é imprescindível para renovar e fortalecer o fermento. Faz sentido para mim. Se você troca uma parte já ácida e um tanto “cansada” por uma parte completamente nova e fresca, o resultado provavelmente será energia renovada. Teoricamente, isso ainda seria possível sem jogar nada fora, mas exigiria ainda mais trigo novo e água fresca para compensar.
Assim, sem refletir muito sobre o assunto, durante o último ano apenas aceitei que era melhor para o meu fermento ser uma massa de 200g na geladeira e perder metade disso na ativação. Aprendi a não ter pena. Na maior parte das vezes, o descarte foi imediatamente para o lixo. Mas, quando sobrava tempo, eu tentava aproveitá-lo de outra forma. Em dezembro, fiz uma cuca de banana com o descarte do dia 18.
Enquanto pensava sobre a palavra descarte – ainda não gosto dela, comecei a me perguntar se a licença do trabalho não era o meu descarte de 2023. Para ser bem sincera, desde 2022 fico me lembrando de que não se pode ter tudo. E que, para alcançar o que você mais deseja, você terá que arriscar algo e, quanto mais importante esse algo, mais chances de ir parar em um lugar onde você não imaginava.
Acontece que eu sou a pessoa que em 2017 não gostava da ideia de desperdiçar nem uma parte de uma massa de água e trigo que estava há 15 dias na geladeira. Quem dirá abrir mão de salário, férias e décimo terceiro! Por isso eu tentei só acumular. Ir juntando tudo que podia me renovar e atenuar a acidez da minha rotina até me sentir forte e ativa para buscar algo melhor para mim. Mas nada era suficiente.
No meio do ano passado, contrariando a opinião de muita gente querida para mim, percebi que era hora de abrir mão de algo. Não daria conta de estudar para outro concurso enquanto tinha aquela rotina de trabalho. Não conseguiria melhorar meu currículo e quem sabe tentar voltar pra carreira acadêmica. Nunca terminaria meu próximo livro e sempre adiaria meu sonho de ser escritora profissional. Aceitei que eu não era como outras pessoas que davam conta de todas essas coisas ao mesmo tempo. E, por mais que tenha planejado tudo para que tivesse o máximo de segurança nessa escolha, o corte ainda é repentino e doloroso.
Meu maior medo é ficar paralisada. Mas escrever essa newsletter pode ser o primeiro sinal das bolhas que estão crescendo em mim.
O que esperar de (À) vontade?
A partir deste primeiro número, você receberá atualizações quinzenais dessa newsletter. E o que espero trazer para cá são conversas sobre o que dá gosto, faz brilhar os olhos e acelerar o coração. Sinto que passei os últimos anos buscando essas coisas e tentando agarrá-las. (À) vontade é mais uma tentativa de capturar momentos de prazer, de registrar processos de fermentação do desejo e de refletir sobre eles.
Idealmente, os textos serão mais curtos que este primeiro. Assumo o compromisso de me restringir a uma lauda, ok?
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Eu não poderia ter me visto mais no seu texto, Seane! Eu tenho um fermento natural que mantenho na geladeira e alimento de quando em nunca. Na verdade, não cheguei a fazer pão a partir dele. Até agora todas as receitas com fiz com ele foram receitas de descarte de fermento, queria manter ele ativo e não jogar nada fora.
Assim como você, tentei acumular o máximo de atividades na minha vida, sem abrir mão de tudo o que eu gostava de fazer, nem de tudo o que me permitia fazer o que eu quisesse do meu tempo livre. Claro, não foi suficiente. Estamos juntas nessa jornada para sonhar um presente diferente, em que nossos dias são uma refeição gostosa pra qual a gente volta dia após dia.
A saber, também sinto falta todos os dias do meu finado cartão alimentação! Ele tinha até um 13º, carinhosamente apelidado de Kit Peru.