O que ainda é difícil de dar sentido na escrita
Sem saber como explicar quem é ela, mas desejando falar dela para todo mundo
Há alguns anos, quando entrei numa de tentar descobrir porque eu queria criar e qual era o meu “projeto”, eu escrevi em algum arquivo de texto esquecido no meu computador que eu queria falar sobre o que era difícil. Claro, existia um contexto: eu queria saber se deveria perseguir um caminho de escritora de erotismo ou se não deveria escolher um cercadinho para a minha escrita. Nessa reflexão, olhando para o que tinha feito no e-book O primo de Aziz, percebi que, realmente, talvez eu devesse parar de defender que o erotismo podia ser não excitante e admitir que o que me interessava era escrever sobre o espinhoso.
Uma relação sexual com uma mulher menstruada, um rapaz que não usa a camisinha, uma mulher que se prepara para chupar um pau com lubrificante de camisinha, um tesão que tem cheiro de insegurança. Nada era mirabolante, mas tudo meio chato de dizer em voz alta (inclusive, isso é um assunto para retomar). E essa dificuldade de falar me atraía mais que o gozo. As questões da minha escrita nem precisavam estar relacionadas ao sexual — como acho que Migalhas já dá pistas — mas com as zonas cinzentas, as relações complicadas, o que nem sempre nos deixa enxergar qualquer contorno de sentido.
Quando sentei para escrever essa newsletter, fiquei pensando em como evitar torná-la pessoal demais. Mas o que escrever quando se perde alguém querido? O que pensar? A princípio, inventei desculpas sobre não querer que a newsletter fosse um diário, algo no estilo do que a Isa Sinay comentou nesse texto. Depois, aceitei que minha relutância em falar sobre esse luto era o medo de não conseguir fazer tanto sentido dessa relação.
Maria trabalhou para a minha família por mais de 30 anos. Ela passou a trabalhar como empregada doméstica na minha casa quando nasci ou pouco depois disso. Quando me entendi por gente ela já era Maria, mas seu nome mesmo era Margarida. Criança, nunca me perguntei porque ela usava um nome se tinha outro, só achava curioso e, quando tentava incluir ela em uma paródia cantarolada por mim, unia os dois: “Maria Margarida de Amaral Pereira Goes, você ‘contriboe’ para o meu viver”.

Maria-Margarida surgiu só pela necessidade da substituição de “Joaquina”, mas desde que fui crescendo, estudando mais, observando os avanços das discussões sobre raça, comecei a pensar também em como unir esses nomes, como acomodar Maria na minha vida para além de uma relação de trabalho.
Enquanto a gente crescia, ao lado da minha mãe, ela era a presença mais constante na nossa vida. Era quem eu e meus irmãos procurávamos para contar piadas, fofocas e inventar brincadeiras. Foi uma das pessoas mais engraçadas que conheci, fazia piada da gente, da tartaruga e dos gatos da casa. Volta e meia a gente flagrava ela brincando com Panqueca no meio da arrumação.
Apesar do “é quase da família” quase escapar da nossa boca sempre que o assunto fosse Maria, ela mantinha o seu contorno de Margarida. Tinha uma família — dois filhos pra quem sempre dedicou tudo o que podia — e seus próprios limites: se recusava a participar de festas e não aceitava dividir a mesa com a gente — o que só resolvemos poucos anos atrás.
Quando terminamos colégio, faculdade e começamos a rodar em busca de mais conhecimento ou oportunidades de trabalho, voltar para casa significava voltar para esse espaço em que eu a encontrava de segunda a sexta. Nessa época, comecei a me preocupar em comprar presentes para ela e descobri que, apesar de Maria ser um universo na minha vida, eu não sabia nada da Margarida. Do que ela gostava?
Quanto mais a gente envelhecia, mas eu percebia os problemas dessa relação. Claro, não ignorávamos as questões trabalhistas. Durante alguma parte dos anos 1900 as coisas não foram perfeitas, mas como a relação se alongava, meus pais também se davam conta de suas responsabilidades. A forma de eu organizar nossa desigualdade dentro de mim era pensar que nunca deixaria ela desamparada. Maria teria uma aposentadoria nem que eu mesma tivesse que garantir isso. E minha irmã também embarcava nessa.
Quando voltei a morar em São Luís, em 2019, ela já contava os dias para se aposentar. Quando veio a pandemia, ela ficou afastada até que as coisas melhorassem. Em 2021, quando tudo parecia ensaiar voltar ao que era, Maria descobriu o câncer. Nessa época, vivi meu primeiro luto. Não achava que ela morreria, não, eu ainda precisava ver ela aposentada. Mas, a partir dali, entendi que precisaria abandonar qualquer sentimento de culpa e agir. Procurar a Margarida não na minha casa, mas na dela. Descobrir o que a gente era fora do espaço doméstico.
Acho que falhei muito com ela. Deveria ter ido lá toda semana e continuado a contar todas as fofocas. Em janeiro desse ano, nos encontramos por três dias seguidos na missão de ir em consultas e exames. Estava quase cega. Era um problema antigo que a gente acompanhava há alguns anos. Eu sabia que ela me procurava para esses exames e consultas porque acreditava que eu poderia ajudá-la mais que os filhos e os netos. Mas era sempre um estranhamento vê-la pequena e envergonhada perto dos outros. Ela não sabia que era a pessoa mais inteligente do mundo? Que com a visão de apenas um olho conseguia ver mais do que eu?
Em maio, liguei no aniversário dela. Ainda estava devendo a visita depois da viagem, com o souvenir dela. Ela estava triste, adoentada, reclamando da barriga, deve ser essa virose. Achei que soava manhosa como meus parentes. Disse que levaria a medalhinha da Virgem de Guadalupe para ela em breve e ela ficaria boa rapidinho. Sexta passada ela foi internada. Foi quando descobrimos que estava mal há quase um mês. No mesmo dia, um diagnóstico de metástases. Demorou até a notícia ser processada. E mesmo sendo uma otimista incurável, entendi que ela estava partindo. Realmente partiu, no dia seguinte.
Não é o primeiro luto da minha vida. Sei que cada luto é um luto. E esse é um luto pisando em ovos, sem saber como explicar quem é ela, mas desejando falar dela para todo mundo, contar que talvez eu seja tão metida a engraçadinha porque cresci vendo os movimentos teatrais dela e ouvindo seu riso frouxo. Confessar que ela nem me deu chance de ser uma criança racista e em todos os seus exemplos foi só amor. Provavelmente foi ela quem me ensinou a ouvir e tentar entender os outros, porque mesmo quando ela tinha dúvidas se achava algo certo ou errado, não conseguia não acolher. Eu gostava quando me pedia conselhos, porque ela me deu inúmeros ao longo da vida.
A neta dela me disse que sempre fui a “Seco” dela. E ela com certeza foi um grande amor da minha vida, de um jeito complicado e emaranhado, que não rende um roteiro bonitinho.
Seane, você me fez chorar dentro de um avião. Você não precisa explicar que foi a Maria sob as luzes da nossa complicada teia social, porque ela está no seu coração e isso basta. Força e abraço apertado, querida.
Seane, meus sentimentos, minha querida. Que bom que você escreveu esse texto. Ele é precioso.