Estava pensando no roteiro que eu faria para o vídeo do meu bolo de aniversário, quando fui parar em reflexões sobre a minha escrita. Isso porque eu tinha decidido falar do meu livro Migalhas no vídeo e percebi que era até bem óbvio falar de mim e desse livro.
Algumas pessoas que estão por aqui e me conhecem desde 2017 sabem que a história de Elvira, a protagonista do livro, também é minha. E admitir isso foi um processo, pois sempre tive receio de revelar coisas desse tipo, temendo que me achassem menos criativa. Quando meu primeiro romance saiu, eu repeti várias vezes que não era a protagonista e que aquelas histórias (de fodas) podiam até ter um dado de realidade, mas não tinham acontecido daquele jeito.
Acho que já soltei pistas desses temas que vivem me consumindo por aqui. Ano passado, enquanto eu avançava na escrita de Migalhas, tive diversos momentos de crise tentando conceber essa história, que eu não queria construir como auto ficção, mas estava sempre com o pé ali.
O engraçado é que, realmente, desde que iniciei esse projeto, nunca quis que ele fosse empacotado como “baseado em fatos reais”. Mas quando o termo “auto ficção” ganhou apelo comercial, tive alguns breves momentos de reflexão.
Demorei para ler Annie Ernaux — e sei que ela nem gosta desse termo — mas depois que li O acontecimento, fiquei encantada pelo que ela construiu. Sem saber, eu também estava chafurdando mensagens antigas de WhatsApp, e-mails, backups do meu computador e tudo que conseguia encontrar de 2017 e 2018. O meu livro era uma investigação sobre um recorte do que eu tinha vivido nesses anos e, em alguns trechos, eu fui obsessiva na precisão.
Queria que as datas fossem exatas, que algumas mensagens fossem exatas. Eu queria que chegasse no leitor do jeito que enviei, da mesma forma que recebi, queria que ele pudesse ser o juiz daqueles acontecimentos.
Mas era difícil tentar manter tudo do jeito que eu acreditava que tinha sido. Especialmente porque, um dos motivos de escrever esse livro, era a vontade de uma mudança.
“Escrevo sobre coisas traumáticas, vividas, sabidas, vistas ou ouvidas por mim. A escrita é um processo meu de busca de sentido. Algum sentido. Porque a minha vida — acho que a de muito mais gente, se não de todo mundo — tem coisas completamente sem sentido. E aquele troço você não esquece, você guarda durante trinta anos e um dia escreve para ver se consegue entender.” (Elvira Vigna)
Estava pensando em como contar para vocês como cortei o vínculo com minha personagem, quando reencontrei a entrevista da Elvira Vigna que foi divulgada no jornal Rascunho em 2013. Na verdade, eu estava em busca de uma citação da Elvira em que ela falava que todos os livros dela eram sobre ela — que eu jurava que já tinha lido, porém, não encontrei — e acabei encontrando algo melhor:
“É meio louco, mas é como se tivesse um diálogo entre mim e aquilo que está sendo escrito, enquanto escrevo: tenho que ouvir, atender e responder àquilo que me está sendo dito por aquilo que está sendo escrito.” (Elvira Vigna)
O processo que Elvira descreve explica como eu me sinto em relação a minha escrita. Não é um monólogo, uma das mágicas da escrita é você perceber que foi transportada para um diálogo e que o texto te afeta na mesma medida em que você toma decisões sobre ele.
Quando Tamara esteve aqui em casa de visita, expliquei para ela ainda de outra forma:
— Não acho que a Elvira sou eu, porque, enquanto eu escrevia, percebi que se eu continuasse presa a isso, eu teria medo ou vergonha de deixar que ela fizesse o que precisava ser feito pela história.
E eu precisava que ela me ajudasse a dar sentido àquelas coisas.
Mais um pouquinho…
Queria ter comentado a lista de “Melhores livros brasileiros de literatura do século 21” da Folha, mas tive um domingo muito preguiçoso e uma segunda de contenção de danos, então acabei deixando passar. Mas como essa newsletter cita Elvira Vigna, quero aproveitar para comentar que me deixou muito feliz encontrar livros que gosto tanto naquela lista: Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, Um útero é do tamanho de um punho, Amora, Olhos d’água e Pornopopeia. Esses são os meus preferidos dos 25 mais votados. Mas, vamos combinar, enquanto Elvira Vigna não estiver, no mínimo, entre os três primeiros colocados, precisaremos pegar em armas!
Quando estava finalizando essa edição, encontrei um textão da Suzana Veiga em defesa de um erotismo sexual para mulheres. Fui ler o texto ansiosa por encontrar palavras e ideias com as quais eu concordava, mas encontrei muito mais. Suzana reuniu muitas referências legais e citações instigantes de autoras que amamos. Fiquei com vontade de ler muito mais!
O Clube de Literatura Erótica se reúne amanhã, dia 29/05, para conversar sobre Regras do Amor na Cidade Grande. Ainda dá tempo de participar!
As meninas do clube indicaram, inclusive, esse vídeo bem legal sobre o livro:
Já tive momentos de crise sobre ser autorreferente demais na escrita. O boom da autoficção me ajudou a refletir a respeito do "valor" que esse tipo de escrita pode ter. Atualmente, sinto que só dá para escrever SOBRE e DO JEITO que conseguimos. Pode ser que um dia eu "passe de fase" e crie de outros ângulos, pode ser que não. Fato é que a escrita segue necessária para mim, então vou fazendo como posso.
Essa newsletter é sempre uma delicinha de ler. Muito bacana a reflexão sobre a interface entre o vivido e o escrito. Concordo com você e me vejo fazendo coisa parecida na minha prosa.